No dia seguinte, na mesa do canto do café do costume e como era habitual, tomavamos, eu um chá preto, ela um café que insistia em mexer até entornar. Aproveitando uma pequena distracção minha, ela mergulhou a ponta do dedo indicador na chávena de café para de seguida mo passar lentamente pela cara.
Estás parva? Disse-lhe eu embora não conseguisse esconder o meu agrado pela brincadeira. Ela sabe que eu gosto deste tipo de jogos e não perde uma oportunidade de me provocar, de me desafiar. Normalmente estes jogos entre nós acabam em discussões que invariavelmente se resolvem na cama.
- Sabes, hoje fiz um poema a pensar em ti. Disse-me ela de sorriso maroto enquanto fazia descer o dedo até à minha boca.
- A sério?
- Sério.
- E fala do quê?
-… de nós, de ti de mim…Queres que to diga?
- Adorava.
- Mas prometes que não te zangas comigo?
- Claro que prometo, porque me haveria de zangar?
- Ela fez um ar sério, respirou fundo e de voz colocada disse:
“ À meia luz te vi,à meia luz te amei e foi à media luz que à merda te mandei”
- Gostas-te? Reparas-te na rima? - Perguntou-me ela enquanto se ria desalmadamente… eu estava sem palavras. Senti-me ridículo, gozado…e não achei graça nenhuma à brincadeira. Sem saber o que lhe dizer ou fazer limitei-me simplesmente a dizer-lhe - Vai à merda!
- Não digas isso! Tu não dizes isso. Essas palavras não te ficam bem, não vão com o teu tipo de pele... Tu amas-me! sou a mulher da tua vida...Não consegues viver sem mim pois não? Perguntou-me ela enquanto me tapava a boca com uma das mãos, de forma a não me deixar responder.
Eu sacudi-a. Afastei-a de mim e levantei-me da mesa demonstrando-lhe o desprezo próprio de quem está apaixonado e não quer partir. Eu tinha de tomar uma atitude, salvar o pingo de amor próprio que ainda me restava. Peguei no caderno de capa preta que sempre me acompanha e virei-me pronto a ir embora. -Vou-me embora! Há! é verdade! Desta vez para variar pagas tu a conta. Disse-lhe tentando não revelar qualquer tipo de emoção.
- Não! Não vás! Volta aqui, estava a brincar... disse-me.
- Não vás, foi uma estupidez minha… mais uma estupidez minha…! Porque será que eu faço sempre tudo ao contrário do que gostava de fazer ou dizer… Não vás! senta-te vamos conversar. – Eu nunca a tinha visto assim neste registo. Ela pareceu-me tão sincera, tão verdadeira. Repensei a minha atitude. Voltei a sentar-me. Só porque ela pediu! Mentira! O certo é que eu não tinha vontade nenhuma de me ir embora e deixar as coisas entre nós naquele ponto. Fiz um ar amuado como só eu sei fazer e fiquei à espera que ela me disse-se qualquer coisa.
Nos primeiros 4 minutos ela não disse nada. Depois, discretamente pegou-me carinhosamente na mão apertando-a com força. Ficámos de mãos dadas em cima da mesa. Corei. Aquela agarrar de mão parecia dizer que ela me pertencia. Senti-me feliz por isso. As mãos dela eram perfeitas, macias. Os dedos, longos e esguios. É engraçado como podemos gostar de uma pessoa pelas mãos. As mãos podem-nos dizer muito acerca dum indivíduo. Se os olhos são o espelho da alma, pode-se dizer que as mãos são a expressão dos sentimentos mais escondidos dela. A forma como se mexem, a temperatura, as unhas, são tudo indicadores da personalidade. Há mãos que mesmo de Inverno são quentes, outras há, que são sempre frias, gélidas. Há mãos secas, enrugadas, húmidas ou peganhentas. Há-as gordas, magras, esqueléticas, carnudas, ossudas, calejadas, aveludadas. Há mãos discretas, envergonhadas e há as que nos apalpam e apertam duma forma indecente mas prazerosa. Há as sinceras e as hipócritas que se movimentam e exibem em poses previamente estudadas. Mas as mãos dela são diferentes de quaisquer mãos que toquei. As mãos dela não cabem em nenhuma destas categorias. Pertencem a uma outra categoria, a categoria das mãos magnéticas. O simples contacto com aquelas mãos perturba-me por completo todo o sistema nervoso. É engraçado como um gesto tão simples como o toque tem o poder de me incendiar por dentro daquela maneira.
Foi a primeira vez que ela me fez uma manifestação de carinho em público. E eu, pela primeira vez na vida tinha sentido o tempo parar à minha volta. Houve magia naquele momento. Foi tão bom! Foi uma manifestação de amor pura e doce. Nem sequer foi preciso ela dizer que me ama. Eu senti que sim, só quem ama verdadeiramente toca assim. Só quem se sente amado e ama como eu a amei naquele momento tem a capacidade de parar os ponteiros do relógio.
Ali mesmo naquela mesa do café do costume, no meio da confusão dos pasteis de nata, das bolas de berlim e dos queques, descobri que o que existia entre nós era mais forte e intenso do que eu alguma vez poderia ter imaginado. Senti que aquele arrepio no estômago que não se descreve só pode querer significar uma coisa, Amor. O que eu sentia por ela era amor. Ela era sem dúvida o AMOR da minha vida. Comovente aquele momento que guardo até hoje só para mim.
(excerto de "O meu amor é uma cabra" de MC. 1996)