Durante todo este tempo não passou um dia sequer, sem que eu não tivesse pensado nela. Todos os dias à mesma hora, como se de promessa se tratasse, passava pela rua onde a vi pela primeira vez.
Não há tasca, restaurante, casa de fados ou beco no Bairro do Amor que eu não conheça. Até já as putas me olham com desconfiança. Excepto uma, a da porta nº 7. Chama-se Maria Odete de não sei o quê. À minha passagem, todos os dias me pedia um cigarro num gesto demorado. Eu, dava-lhe dois, em movimentos rápidos e inseguros. Com o passar dos dias, os meus gestos ficaram cada vez mais seguros. O tempo deu lugar à troca de algumas palavras de agradecimento e depois a algumas frases curtas.
- Arranjas-me um cigarro? “Fixe! Dois”. Amanhã passas cá?.
- Gostava de não passar...
Repetimos este dialogo sem acrescentar uma palavra, sem alterar um gesto vezes sem conta. Tudo se passava rigorosamente assim. Igual.
Um dia, ao passar em frente da porta nº 7 como sempre fazia, já com os dois cigarros na mão prontos para lhos entregar, em vez de em pé como sempre a tinha encontrado, na sua irepreensivel postura de “puta”, Maria Odete estava sentada no degrau do portal, com os braços enrolados em volta da barriga e a cabeça aconchegada no meio das pernas. Silencio.
- Então, hoje compraste tabaco? - Perguntei a medo.
- Não. É que...A noite ontem correu-me mal... - Disse-me ela sem levantar a cabeça. Desci ao nível dela. De cocaras perguntei à minha amiga “puta” o que se tinha passado na noite anterior. Foi então que, levantando a cabeça, me contou que um filho da mãe, que bem se podia considerar filho dela, a havia levado para o carro e a tinha maltratado. As marcas no corpo dela não o desmentiam.
-Já foste à Policia?- Perguntei eu ingenuamente. Respondeu-me que as “putas” não são bem recebidas na Policia.
- Os policias só gostam de “putas” quando despem a farda.- Acrescentou.
- Mas tu...Tens de fazer qualquer coisa, sabes quem foi não sabes? Insisti.
- Mas em que mundo é que tu vives? Eu sou uma “puta”! estás a ver? –Levantou-se. - Olha bem para mim! uma “puta”! Eu sou uma “puta”! - Disse-me com a voz alterada, enquanto batia com força com as mãos cerradas no peito. Calei-me. Voltou a sentar-se. Deu-me vontade de a abraçar. De lhe dizer que não voltará a acontecer. Não fui capaz.
(MC 1996)